sexta-feira, 8 de março de 2013

Grimorium


O quarto de sua avó ainda estava do jeito que lembrava. A cama recoberta por uma colcha de retalhos feita à mão, a mesinha de estudos em frente à janela com alguns exemplares ainda sobre ela, a estante de mogno com os antigos livros de receitas e os vidros de ingredientes, tudo ali, exatamente do jeito que sua memoria recordava. Parada na soleira da porta, demorou alguns instantes para dar o primeiro passo, estar ali era como viajar no tempo. Folheando os exemplares da mesa pode rever suas primeiras receitas, e algumas ainda continham as anotações de sua avó - ferver até que o perfume preencha a sala - era assim que ela ensinava, adicionando detalhes e pequenos conselhos as anotações feitas. Abriu um ou dois frascos, cheirou, reviveu cada momento contido naqueles perfumes. Na estante de mogno estavam todos os livros de anotações e receitas da família desde a primeira geração. Mas o que ela buscava era o livro de anotações de sua avó, aquele grande com uma capa azul escura e marcas rubras. Na prateleira superior, no canto direito bem ao lado das "receitas para agradar a todos", lá estava ele. Intacto. Em sua capa, com letras delicadamente desenhadas, lia-se GRIMORIUM. O livro de anotações de toda uma vida da mulher mas sábia que já conhecera. Ali estava a resposta para encontrar seu coração.
Já haviam se passado mais de cinco luas desde aquele encontro nas colinas. Seus olhos nunca mais esqueceram aquele brilho âmbar. Seu corpo sentia falta de um único abraço, e o perfume da floresta de carvalhos pela manhã parecia estar impregnado em sua pele. Todos os dias ela havia retornado aquela colina, sempre no mesmo horário, na esperança de encontrá-lo novamente, mas todas às vezes retornou sozinha. Seu coração estava preso, ligado ao jovem de traços fortes e mãos delicadas. E só existia uma maneira de resgatá-lo, encontrando o jovem que o prendeu. E a única maneira que ela conhecia para fazer isso estava ali, em suas mãos.
Folhando o pesado livro, procurava uma receita mais que especial, a "receita para encontrar corações". Podia parecer estranho, mas foi exatamente assim que sua avó lhe explicara quando perguntou para que servia aquele estranho chá de flores e frutos. 
- Quando se perde o coração, minha filha, perde-se também a alma! - dizia ela, enquanto amassava algumas folhas de malva e calêndula no pequeno pote de barro.
E agora podia sentir claramente o significado daquelas palavras. Ele não levara apenas seu coração, aprisionara sua alma, e isso a assustava.
Sentada outra vez sob a grande macieira, releu atentamente a antiga receita, e procurou anotar todos os ingredientes, a maioria encontrados no jardim ou na cozinha da senhora Flynn. Mas o que a inquietou foi a lua, teria que esperar até que estivesse cheia novamente, pois só a luz da lua pode iluminar um coração perdido. 
Olhando para o céu, para o pequeno filete de luz que começava a se formar, num profundo suspiro, fechou os olhos e pode ouvir a doce melodia que a fazia lembrar do seu coração.

terça-feira, 5 de março de 2013

O Bosque das Macieiras


Estava sentada sob a macieira no centro do jardim, e apesar do forte e doce perfume que vinha das maçãs maduras, ela ainda podia sentir o cheiro da floresta de carvalho pela manha. Sua pele lembrava-se do suave toque de suas mãos e isso a fazia arrepiar, e quando fechou os olhos pode ver claramente aquele encantador brilho âmbar que invadiu sua alma, o que a fez para de respirar por quase dois segundos. 
A casa em que estava hospedada desde que chegou a Malahide, era uma antiga propriedade da família, que estaria abandonada não fossem os cuidados dos Flynn. Melvina era uma senhora robusta, com cabelos cor de fogo que, apesar da aparência mal humorada, era doce e gentil como uma mãe; já o senhor Flynn era alto, esguio, com longos cabelos loiros que usava preso por uma tira de couro. Barrie Flynn era o melhor arqueiro que existia no condado de Fingal. Os Flynn cuidavam da propriedade desde que sua família partira para as terras de Tzhir em busca de novas conquistas. Era uma casa simples, mas muito segura, pois fora construída pelos seus antepassados com as pedras do rochedo. O jardim das macieiras fora plantado pela sua tataravó, que as cultivava em homenagem a Ceridween, a quem ela aprendeu a respeitar e honrar. 
Sentada ali, sob a macieira central, ela podia sentir toda a energia que vinha da terra, e isso permitia que sua mente vagasse livremente por entre mundos e tempos. Fechou os olhos novamente e procurou relembrar do caminho até a colina, pode ver claramente a pequena árvore, sentir a brisa que vinha do mar e ouvir as ondas quebrando no rochedo, mas não sentia o cheiro da floresta de carvalho, ele não estava ali. Desde aquela manhã, depois que deixou seu abraço para protegê-lo de Fergus, todos os dias ela relembrava as lições aprendidas com sua avó e viajava até a pequena árvore na esperança de encontrá-lo novamente, mas todas as vezes retornava sozinha, sem nem um sinal do jovem estranhamente belo de traços bem marcados e mãos delicadas. Todos os dias ela procurava pela doce melodia que havia conquistado seu coração, mas o único som que ouvia era das ondas quebrando no rochedo.
De volta ao jardim das macieiras, ela encolhia-se num abraço solitário, sentindo o frio da tarde que chegava ao fim, e antes que pudesse evitar, uma lágrima escorria pela sua face pálida. Seria mais uma tarde fria não fosse Fergus, que estava deitado ao seu lado, erguer-se para secar suas lágrimas com um amor quase sombrio refletido em seus grandes olhos vermelhos.
Outra vez havia esperado por ele, e outra vez Fergus a protegeu.