segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Vozes da noite


Ela olhou pela pequena janela da antiga casa, ainda era noite. A lua estava encoberta por nuvens densas deixando-a mais escura e assustadora. Já era noite alta, mas estava difícil dormir com tantas vozes ecoando em sua cabeça. Fergus dormia, deitado a seus pés, sabia que o acordaria ao menor movimento, por isso manteve-se imóvel, olhando pela janela. As vozes não paravam, elas nunca param, mas desta vez estavam tentando lhe dizer algo. Parou por alguns instantes, concentrou-se o máximo que pôde e finalmente conseguiu distinguir algumas palavras no meio do turbilhão de ecos: volte até a colina. Isso fazia sentido para ela, mas sabia que não havia mais nada o que encontrar na colina, então,  porquê voltar até lá? 
Ficou imóvel por horas pensando naquelas palavras, o sol já estava começando a aparecer na pequena janela quando decidiu o que iria fazer.
Levantou-se delicadamente, tentando não acordar Fergus, vestiu o capote de lã que a senhora Flyn havia dado a ela em em seu primeiro dia, calçou as botas tentando não fazer barulho, pegou duas maçãs, um pedaço do pão de frutas do dia anterior e silenciosamente abriu a pesada porta de madeira. "Ufa! Ele não acordou." Pensou ela quando viu que Fergus ainda roncava no tapete ao lado da cama.
Colocou o pesado capuz, pois ainda serenava quando saiu, e partiu para as colinas. Não sabia porque, mas estava ansiosa e animada com o que poderia encontrar lá, quando se deu conta, estava correndo, as botas pesadas e maiores que seus pés, machucavam a cada passo. 
Quando chegou ao topo da colina estava ofegante e cansada, mas não menos animada. Foi até o grande carvalho, lugar onde encontrou pela primeira vez aqueles doces olhos âmbar, e o que encontrou a deixou ainda mais cheia de dúvidas, o que aquilo queria dizer? Porque as vozes a mandariam até lá por nada? 
Sentou-se na grama úmida, tirou uma maçã do alforje e comeu contemplando o grande arbusto com suas pequenas flores amarelas. A cada mordida tentava decifrar o que aquilo significava, porquê todo aquele barulho por um arbusto de flores amarelas? Perdida em seus pensamentos não percebeu que a brisa havia mudado de direção, e foi então que pode sentir aquele mesmo cheiro doce que guardava em sua pele, olhou para trás num único movimento, esperando ver novamente o belo rapaz de pele alva, mãos delicadas e olhos cor de âmbar, mas só podia ver o velho carvalho e alguns arbustos de amoras silvestres. Virou-se sem acreditar, olhou para todos os lados à procura do rapaz, foi quando novamente sentiu a brisa e dessa vez ela trouxe o cheiro doce do arbusto, e ele era tão enebriante quanto o cheiro do carvalho. Aproximou-se lentamente,  e com todo cuidado abaixou-se até as pequenas flores amarelas,  e as cheirou... foi o perfume mais delicado que já havia sentido, era estranho porque  embora não fosse o mesmo cheiro do rapaz, trazia todas as  lembranças daquele dia. Abaixou-se e cheirou-as mais uma vez, desta vez sentiu seu corpo tremer, viu sua pele se arrepiar e por um instante achou ter visto algo no meio do arbusto. Sem pensar, afastou as delicadas folhas e algo saiu voando, parecia uma das flores, tentou alcançá-la mas ela era muito rápida, enquanto ainda  corria a pequena flor amarela parou no ar, olhou para seus grandes olhos negros e num simbilar rodopiou no ar e sumiu por entre as árvores. 
A pequena sentou-se no chão, ofegante e incrédula, precisou respirar várias vezes até recuperar o folego, foi só então que percebeu que havia entendido o que a pequena flor dissera. 
"Nunca esqueça a canção."
Foi então que ela percebeu, aquele rapaz... aquela voz... aquele toque... aquele cheiro... aquela flor...
Agora ela entendia, agora ela sabia o que procurar. Colheu algumas flores de mirra, embrulhou-as na toalha do pão de frutas e correu para casa, afinal, hoje era noite de lua cheia.


sábado, 15 de agosto de 2020

Sol e chuva


 Hoje amanheceu um lindo dia de sol, daqueles que pedem um passeio no parque, uma casquinha ou um picolé, um dia para sorrir, pisar com os pés descalços na grama, mas eu mal pude ver o sol, chovia em meus olhos. Seria estranho se já não fosse tão comum.
As duas meninas, negras como a noite, nadavam num lago castanho de sentimentos e pensamentos tão bagunçados quanto meus cabelos. Parei por um instante para contemplar a chuva que molhava meu rosto e percebi que, de tanta chuva, haviam marcas profundas pelo caminho. Despois de alguns minutos ali parada, tentei identificar algumas delas, mas juntas elas formavam um labirinto de lembranças que ficou dificil perceber a qual delas pertecia cada marca. Tentei refazer mentalmente cada caminho, na esperanca de achar uma saída para aquele labirinto, mas quanto mais eu olhava mais eu me perdia, então decidi sentar e esperar, fechei os olhos na esperança de que a chuva parasse, mas chuvas assim nem sempre são passageiras, e algumas trazem ventos, granizos e causam um estrago bem grande. Fiquei ali, parada, inércia total, ouvindo o balhuro da chuva que somente minhas meninas viam. Não sei quanto tempo se passou, se foram somente alguns minutos, algumas horas ou anos, mas sei que o tempo passou e eu não vi. Estava com tanto medo da chuva, dos barulhos e das rajadas de vento que não percebi o quanto de vida havia se passado.
Quando abri os olhos vi meus filhos crescidos, os móveis empoeirados, a grama que virou mato e cobria quase toda a fachada da casa, senti falta do meu cachorro me olhando daquele jeito "me ama" que só os cachorros tem, quase tudo ali estava mudado, muitas coisas quebradas, desgastadas, destruídas pelo tempo em que passei de olhos fechados, esperando a chuva passar.
E foi ao abrir os olhos que percebi que aquela chuva jamais passaria, não importava quanto tempo eu passasse de olhos fechados, nem dos lugares em que eu tentasse me esconder, ela jamais passaria, pois ela era a minha chuva, a chuva que precisava chover, pois só assim a terra seca e árida se tornaria fértil novamente, era preciso chover para florescer o jardim.
Neste momento tirei os sapatos, me despi da capa de chuva e dancei, dancei como uma criança novamente, feliz por estar chovendo, feliz por ver o sol, feliz por não ser inverno.

(Escrito em junho/2015)